sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Um Menino entre os mestres (Lc 2,41-52) - Edmilson Schinelo


A narrativa da perda e do encontro do menino Jesus no templo (Lc 2,41-52) faz parte dos chamados "evangelhos da infância". Presentes nos livros de Mateus e de Lucas, esses relatos são escritos mais tardios, ainda que recolham tradições antigas. Como numa casa, em que a porta não é a primeira parte a ser construída, muito provavelmente foram a última parte a ser escrita. Hoje, os "evangelhos da infância" constituem os dois primeiros capítulos tanto de Mateus como de Lucas.

Mateus concentra as narrativas na pessoa de José e busca mostrar que Jesus, em paralelo com Moisés, é o verdadeiro libertador do novo e definitivo êxodo. Por isso, apresenta um menino tendo que ser salvo de um novo faraó (Herodes) e lembra as palavras de Oséias: "Do Egito chamei o meu filho" (Os 11,1).  Como exilado político, Jesus também faz a caminhada libertadora de seu povo e vem realizar a libertação plena de tudo o que oprime e diminui a vida.
Lucas, por sua vez, além de centrar mais a narrativa na figura de Maria, traça um paralelo entre a figura de Jesus e a de João Batista. Enquanto em Mateus são os sábios do Oriente quem visita Jesus (representando as nações que chegam para homenagear a criança recém-nascida), em Lucas os primeiros a visitar Jesus são os pastores, que deixam maravilhadas a todas as pessoas que escutam o seu anúncio. Também, de acordo com a narrativa de Lucas, Jesus nunca foi ao Egito: Terminando de fazer tudo conforme a lei do Senhor, voltaram à Galileia, para Nazaré, a sua cidade (Lc 2,39). São jeitos diferentes de misturar tradição e teologia. E a beleza dessas narrativas está, justamente, em buscar o seu significado teológico mais profundo, o seu sentido de vida. E isso não se alcança ficando preso nas figuras. Porém, olhando para além das imagens.

A antecipação da Páscoa definitiva
Lucas inicia a narrativa, afirmando que os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa (Lc 2,41). Na história do povo de Israel, por vários séculos, esta festa era uma celebração doméstica, um momento de memória coletiva do povo, mas também de fortalecimento de vínculos familiares. Entretanto, o rei Josias (640-609 a.C.) determinou que a festa deveria ser celebrada de forma centralizada em Jerusalém, a capital (2Rs 23,21-23). Com essa medida, ele conseguiu concentrar poder através do controle do culto praticado no templo, que ficava em Jerusalém. Houve muita resistência, mas a medida do rei Josias foi imposta pela força bruta.
Para Lucas, os pais de Jesus seguem essa tradição, inclusive quando ele completa doze anos (Lc 2,42). Terminada a festa, eles começam a viagem de volta, sem notar que o menino não está na caravana. Depois de andarem um dia inteiro, percebem a sua falta e começam a procurá-lo entre os parentes e conhecidos. Como não o encontram, retornam a Jerusalém (Lc 2,43-44).
O menino é encontrado depois de três dias (Lc 2,46), como que numa prefiguração da sua própria Páscoa: depois de três dias ele ressuscita. Além disso, a comunidade de Lucas escreve já conhecedora da filiação divina de Jesus. Por isso, registra desta forma a resposta do menino: Não sabíeis que devo estar na casa de meu pai? (Lc 2,49). A frase não é de tradução muito simples e não fala literalmente de casa. Podemos também traduzi-la assim: "Não sabíeis que devo estar com (as coisas de) meu pai?".

Um menino entre os "mestres"
Os pais de Jesus o encontram "sentado em meio aos mestres" (Lc 2,46). A palavra utilizada por Lucas, normalmente traduzida por "doutores", é didaskalos (de onde vemdidática, em português). É o mesmo termo empregado mais tarde para referir-se a Jesus: Não perturbes mais o mestre (Lc 8,49). Na narrativa da Páscoa, o próprio Jesus teria usado o termo para falar de si: Direis ao dono da casa: "o mestre te pergunta: onde está a sala em que comerei a Páscoa com meus discípulos?" (Lc 22,11).
Jesus está, portanto, conversando com os mestres do seu povo. De acordo com o texto, a primeira coisa que ele faz é escutar. Como toda criança, ele escuta e pergunta. E como toda criança, é inteligente nas respostas. É possível imaginar a cena de várias formas, inclusive com outras crianças juntas, também escutando, perguntando e respondendo. Como as crianças da época, Jesus ensina e aprende. Se assim não fosse, não teria mais como crescer em sabedoria (Lc 1,52). Quem sabe tudo ou acha que sabe tudo, não tem mais como crescer.
O texto faz questão de ressaltar que as respostas de Jesus chamam a atenção, deixam as pessoas extasiadas! Como, ainda hoje, muita gente diz: "Mas que criança inteligente!". Como dissemos, a comunidade de Lucas escreve muito tempo depois, já conhecedora da divindade de Jesus. E consegue preservar no texto duas dimensões: um menino que não é nada comum (é o próprio filho de Deus) e que, ao mesmo tempo, cresce e aprende, como toda criança. Cresce, inclusive, em graça, em sua comunhão com o Pai, amadurecendo a sua missão a serviço do reinado de Deus. E nesse processo, também ensina. Como também nos ensinam as crianças de hoje.

Pais aflitos e desesperados
Impossível não perceber, na narrativa, a aflição e o desespero dos pais. Só quem teve um filho desaparecido consegue dimensionar a dor. Noites e dias de procura interminável! Angústia, lágrimas e cansaço. E quando a criança é localizada, surpresa, alívio e desabafo, expressos pelas palavras da mãe: Filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos! (Lc 2,48).
Trata-se, no caso da narrativa de Lucas, de uma história de final feliz. Não é esse o caso da experiência de milhares ou até milhões de mães e pais pelo Brasil afora. Crianças que se perdem nas grandes cidades, crianças separadas de seus pais em situações de guerra e tantas outras condições.
Não podemos deixar de ter presente essa dor! Nossa solidariedade tem que ser maior. Como também deve ser maior o nosso esforço para que tais situações sejam menos frequentes. Especialmente no caso das guerras, nossas lutas pacifistas precisam ser intensificadas. Em não sendo assim, não estaremos vivendo o espírito natalino: um menino nos foi dado para que toda marca de guerra, toda bota de soldado e todo uniforme militar manchado de sangue sejam queimados (Is 9,4).

Guardar os fatos no coração
A narrativa de Lucas termina reafirmando que o menino crescia em sabedoria, em estatura e graça, diante de Deus e diante das pessoas (a mesma frase já havia sido dita referindo-se ao menino Samuel, filho de Ana - 1Sm 2,26). Reafirma também que a mãe de Jesus guardava todos esses fatos (literalmente, essas palavras) no seu coração (Lc 2,51-52). É terceira vez que a frase aparece nos dois primeiros capítulos de Lucas (ver também Lc 1,69 e Lc 2,19).
Guardar os fatos no coração é mais do que ter boas lembranças. É manter viva a memória e a história, para que as coisas ruins não se repitam e para que os bons ensinamentos permaneçam e produzam frutos. É atitude, é saudade ativa. Que assim possamos também nós sentir e agir!

Edmilson Schinelo é assessor do CEBI e colaborador nos livros Bíblia e Negritude eLeitura Bíblica: a juventude mostra o caminho.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Mistério e encarnação: corpos em movimento (Tea Frigerio)






Tea Frigerio é de Belém (PA). É colaboradora na série Curso Popular de Bíblia  e autora do livro Construir a Solidariedade a partir do Livro de Rute.



Natal nos coloca no âmago do mistério da Encarnação.
A Divindade que se torna Humanidade.
Humanidade-Criança.
Este o Mistério!
Este o Natal
Esta a Realidade!
Mistério é linguagem.
Linguagem que fala, podemos ouvir e ler.
Então vamos ouvir e ler.
Primeiro, porem vamos ser humanas, ser corpo, nos olhar, nos ouvir, nos cheirar, nos tocar...
Encarnação: a Palavra se faz carne!
Encarnação é assumir uma carne, assumir um corpo.
Fala de corpos que se gostam no amor se unem, se curtem dois numa carne só, e a vida acontece.
Um corpo fica grávido, gestante, dá à luz.
Criança, nova vida.
É movimento, encontro, acolhida, dar espaço, conviver, criar laços, deixar partir, não mais uma carne só, duas carnes, duas vidas.
Movimento de três corpos: homem-mulher-criança.
Natal é movimento.
Movimento profundamente Divino-Humano.
Movimento-caminho para-nos encontrar, para se colocar a caminho conosco.
Corpo divino-humano em movimento.
Corpos que se movimentam.
Zacarias o insucesso o deixou mudo.
Volta, caminha para casa, caminha para Isabel.
Outro caminhar, um encontro amoroso diferente.
A que era estéril se torna fecunda.
Uma criança em seu ventre, a palavra na sua boca.
Dá nome ao filho.
Movimento que restitui a palavra ao esposo Zacarias.
Isabel e Zacarias, caminho que levou à circularidade.
Mulheres grávidas em movimento.
Encontro de idades, Maria, Isabel, conversa, segredos, cumplicidade, ousadia, rebeldia, sororidade, e no ventre movimento, os filhos pulam de alegria anunciado o novo.
Novidade é perigosa!
O poder quer ser dono do caminho, do movimento, quer contar, quer controlar, quer tributar. José, Maria, burrinho, lá vão, em caminho, em movimento a profecia a cumprir, Belém, a casa do pão, manjedoura não de pão, berço da criança-deus.
Luminosidade, anjos e anjas, estrelas, movimentos brilhosos convidam a se movimentar, a caminhar, seguir o pulsar das estrelas, das vozes que convidam: Num casebre, uma mulher, com seu esposo, um recém-nascido precisando de tudo. O recém-nascido abandonou tudo para vir ao nosso encontro, para nos encontrar, precisa de nós...
Então vamos! Então foram!
Então vamos... ... Como foram os Sábios caminhando com a estrela, aventurando, arriscando, desencontrando e encontrando. ... Peregrinado como peregrinou Simeão, que ao ver os três no Templo, os corpos fazendo o rito, reconheceu, este movimento não é do templo é da Casa, da manjedoura. Encontrei, meu peregrinar findou. ... Como Ana, profetiza de quem não ouvimos a voz. Se profeta é sem dúvida se movimentou, caminhou e anunciou: esta é a Boa Nova: Deus é Criança, Criança é Deus.
Deus-Criança, que mistério é este? Deus deve ser forte, onipotente, todo-poderoso.
Criança é Deus, que mistério é este? Criança é fragilidade, dependência, necessidade, pequenez, abandono, entrega, confiança.
Natal é tudo isso! Deus é Criança, Criança é Deus movimento para nos encontrar. Criança é Deus, Deus é Criança que se abandonou em confiança radical no ventre, nos braços, nos seios de Maria; confiança radical em José, ele cuidaria de tudo! Confiança radical na humanidade, em nós!
Natal, Mistério, linguagem, escutamos, vemos?
O que esperamos a nos colocar em movimento, a caminho!


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012


E encheu de bens os famintos... (Lucas 1, 39-56)

Quarta-feira, 19 de dezembro de 2012 - 14h03min
por Ildo Bohn Gass - Formação CEBI
Para muitas igrejas, a Palavra evangélica proposta para a liturgia do próximo final de semana é a visita de Maria a Isabel (Lucas 1,39-56), que faz parte dos relatos da Infância de Jesus segundo Lucas (Lucas 1-2). Essas narrativas, mais do que dizerem como os fatos aconteceram, indicam para realidades mais profundas que iluminem a caminhada das comunidades a quem se destinam. Em resumo, o primeiro capítulo do Evangelho da Infância mostra como é reconhecida a ação de Deus em meio ao povo excluído, mas cheio de esperança, representado por Zacarias, Isabel e Maria. Dois eram idosos, uma era estéril e a outra ainda não havia tido relações sexuais com homem. Portanto, eram pessoas de quem não se esperava que pudesse nascer vida nova, que pudessem dar à luz uma criança.
A narrativa proposta pode ser dividida em três momentos. O primeiro descreve a ida de Maria à casa de Isabel e de Zacarias, próxima de Jerusalém (Lucas 1,39-41), uma caminhada de mais de 100 km. De um lado, essa saída de casa faz-nos lembrar de tantas jovens que também precisam deixar seus povoados quando engravidam, a fim de encontrar apoio em familiares que moram distante. De outro lado, quando foi chamada para ser a mãe do Messias, Maria havia se disponibilizado para estar a serviço da Palavra de Deus (Lucas 1,38). Agora, ela já está a caminho para servir, para ser solidária com outra mulher, também grávida. É a solidariedade entre as mães que reconhecem em seus corpos o agir do Espírito divino, pois ambas receberam a graça da fecundidade de forma misteriosa. Mas não é somente o encontro de duas mulheres. É também o encontro de duas crianças ainda no útero de suas mães. É o encontro do Precursor com o Salvador. João alegra-se com a visita de Jesus (Lucas 1,41). Ainda no ventre materno, já aponta para seu primo como aquele que vem socorrer o seu povo num momento de forte repressão do império romano.
A segunda parte desta narrativa é a saudação que Isabel faz a Maria (Lucas 1,42-45). Impulsionada pelo Espírito, a mãe de João Batista reconhece Maria como a mãe do Messias. Ao mesmo tempo em que elogia a sua fé (Lucas 1,45), a declara abençoada, bem-aventurada, assim como o fruto do seu ventre (Lucas 1,42). Essa saudação faz lembrar outras mulheres que também foram chamadas de benditas. São os casos de Jael (Juízes 5,24) e de Judite (Judite 13,18), ambas libertadoras de seu povo ameaçado por exércitos poderosos. Em Lucas 1,56, podemos ler que Maria ficou três meses com Isabel. Mais uma vez, os autores do texto fazem memória das Escrituras de Israel e querem nos apresentar Maria como a nova Arca da Aliança, pois em seu útero carrega o Emanuel, o Deus que está em nosso meio. É que, da mesma forma como Maria ficou os três meses com Isabel, também a antiga Arca da Aliança havia ficado durante três meses na casa de Obed-Edom (2 Samuel 6,2-11; cf. v. 11). Em outras palavras: os representantes da antiga Aliança, Zacarias (Javé se lembrou) e Isabel (Deus é plenitude), reconhecem a ação de Deus em Maria (a amada) e Jesus (Javé salva), representantes da nova Aliança. João (Javé é misericórdia) anuncia que a misericórdia de Deus na antiga Aliança vem se realizar plenamente em Jesus de Nazaré. Por isso, seus pulos de alegria no ventre de Isabel (Lucas 1,41.44), acolhendo o novo que está por nascer.
A terceira parte do relato é a reação de Maria à saudação de Isabel, é o cântico de Maria conhecido como Magnificat (Lucas 1,46-55). Ele está recheado de memórias da história de Israel, especialmente do canto de Ana, a mãe do profeta Samuel (1 Samuel 2,1-10). Entre outros textos, recorda também a profecia de Sofonias em favor dos pobres de Javé, o resto fiel a Deus (cf. Sofonias 2,3; 3,11-13).
Maria é a legítima representante de todos os pobres que têm esperança. Da mesma forma como o profeta Habacuc (Hab 3,18), ela percebe a presença de Deus e se alegra com sua grandeza (Lucas 1,46-47). E o motivo dessa alegria é que, tal como na experiência libertadora do Êxodo (Êxodo 3,7-8), Deus viu a humilhação dos pobres e exerce sua misericórdia para com eles, estando a seu lado para libertá-los (Lucas 1,49-50; Salmo 103,17).
Qual é a força capaz de promover essa libertação? É a força do braço de Deus, isto é, a força de sua justiça, que consiste e um projeto revolucionário que subverte relações desiguais. Se antes os poderosos humilhavam os pobres a partir de seus tronos, agora os famintos são exaltados e comem pão com fartura (Lucas 1,51-53). Mais que ser uma mulher submissa e alienada dos conflitos sociais de seu tempo, Maria é uma mulher de luta pela igualdade e pela superação de todas as injustiças. Ela é subversiva porque subverte as relações de humilhação propondo a acolhida e a igualdade. Não é por acaso que seu filho seguiu os passos dela nesse caminho. É no engajamento pela superação de todas as formas de opressão que revelamos a misericórdia divina em nossa prática. A justiça de Deus se revela em seu agir na defesa dos fracos e contra todos os sistemas que os oprimem, sejam eles políticos ou econômicos, culturais ou religiosos. Nesse agir libertador se manifesta a aliança fiel e misericordiosa esperada desde as origens do povo hebreu (Lucas 1,54-55; Miqueias 7,20).
O Magnificat celebra a esperança na realização da vontade de Deus que liberta. E mais. Convida a todas as pessoas discípulas de Jesus a nos juntarmos a Maria para colocar-nos a serviço desse projeto de Deus, de modo que também em nós se realize a sua Palavra (cf. Lucas 1,38). A ação divina em Maria foi possível por que ela acreditou (Lucas 1,45), ela deu a sua contribuição, colocando-se a serviço de Deus na solidariedade. Mais adiante, quando uma mulher também declarara Maria feliz, Jesus dirá a ela que "felizes, sobretudo, são os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática" (cf. Lucas 11,27-28). E essa bem-aventurança soa forte para nós ainda hoje.

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Aprofunde a reflexão sobre O Magnificat com o livro "O CANTICO DA BEM-AVENTURADA", de Maria das Graças Vieira. Coleção A Palavra na Vida/268.  
Exegese e interpretação do cântico de Maria em Lucas 1,46-55 na perspectiva da libertação que se atualiza cada vez que o pão é partilhado, a justiça se realiza e o pobre encontra-se com o deus-libertador.

A visita de Maria a Isabel - Alegria no Espírito! (Lc 1,39-56)

Quarta-feira, 19 de dezembro de 2012 - 16h12min
por CEBI Publicações
A VISITA DE MARIA A ISABEL
ALEGRIA NO ESPÍRITO
Lucas 1, 39-56

Texto extraído do livro O AVESSO É O LADO CERTO. Círculos Bíblicos sobre o Evangelho de Lucas de autoria de Carlos Mesters e Mercedes Lopes.
 Mais informações com vendas@cebi.org.br

O ASSUNTO DA VIDA: PARA COMEÇO DE CONVERSA
O texto de hoje nos fala da visita de Maria a sua prima Isabel. As duas eram conhecidas uma da outra. E, no entanto, neste encontro elas descobrem, uma na outra, o mistério que ainda não conheciam e que as encheu de muita alegria. Hoje também encontramos pessoas que nos surpreendem com a sabedoria que possuem e com o testemunho de fé que nos dão.

CHAVE DE LEITURA
Na leitura que vamos refletir, sobretudo no Cântico de Maria, percebemos que ela descobriu o mistério de Deus não só na pessoa de Isabel, mas também na história do seu povo. Durante a reflexão vamos prestar atenção no seguinte: ''Com que palavras e comparações Maria expressou a descoberta de que Deus está presente em sua vida e na vida do seu povo?''

SITUANDO
Quando Lucas fala de Maria, ele pensa nas comunidades do seu tempo que viviam espalhadas pelas cidades do império romano. Maria é, para ele, o modelo da comunidade fiel. Descrevendo a visita de Maria a Isabel, ele ensina como aquelas comunidades devem fazer para transformar a visita de Deus em serviço aos irmãos e irmãs.
O episódio da visita de Maria a Isabel mostra ainda outro aspecto bem próprio de Lucas. Todas as palavras e atitudes, sobretudo o Cântico de Maria, formam uma grande celebração de louvor. Parece a descrição de uma solene liturgia. Assim, Lucas evoca o ambiente litúrgico e celebrativo, em que as comunidades devem viver a sua fé.

COMENTANDO
1. Lucas 1,39-40: Maria sai para visitar Isabel
Lucas acentua a prontidão de Maria em atender as exigências da Palavra de Deus. O anjo lhe falou da gravidez de Isabel e, imediatamente, Maria se levanta para verificar o que o anjo lhe tinha anunciado, e sai de casa para ir ajudar a uma pessoa necessitada. De Nazaré até as montanhas de Judá são mais de 100 quilômetros! Não havia ônibus nem trem.
2. Lucas 1,41-44: Saudação de Isabel
Isabel representa o Antigo Testamento que termina. Maria, o Novo que começa. O AT acolhe o NT com gratidão e confiança, reconhecendo nele o dom gratuito de Deus que vem realizar e completar toda a expectativa do povo. No encontro entre as duas mulheres manifesta-se o dom do Espírito que faz a criança estremecer de alegria no seio de Isabel.  A Boa Nova de Deus revela a sua presença numa das coisas mais comuns da vida humana: duas donas de casa se visitando para se ajudar. Visita, alegria, gravidez, criança, ajuda mútua, casa, família: É nisto que Lucas quer que as comunidades (e nós todos) percebamos e descubramos a presença do Reino. As palavras de Isabel, até hoje, fazem parte do salmo mais conhecido e mais rezado da América Latina, que é a Ave Maria.
3. Lucas 1,45: O elogio que Isabel faz a Maria
"Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor vai acontecer". É o recado de Lucas às comunidades: crer na Palavra de Deus, pois ela tem força para realizar aquilo que nos diz. É Palavra criadora. Gera vida nova no seio de uma virgem, o seio do povo pobre e abandonado que a acolhe com fé.

4. Lucas 1,46-56: O Cântico de Maria
Muito provavelmente, este cântico já era conhecido e cantado nas comunidades. Ele ensina como se deve rezar e cantar.
Lucas 1,46-50
Maria começa proclamando a mudança que aconteceu na sua própria vida sob o olhar amoroso de Deus, cheio de  misericórdia. Por isso, ela canta feliz: "Exulto de alegria em Deus, meu Salvador".
Lucas 1,51-53
Em seguida, canta a fidelidade de Javé para com seu povo e proclama a mudança que o braço de Javé estava realizando a favor dos pobres e famintos. A expressão "braço de Deus" lembra a libertação do Êxodo. É esta força salvadora de Javé que faz acontecer a mudança: dispersa os orgulhosos (1,51), destrona os poderosos e eleva os humildes (1,52), manda os ricos embora sem nada e aos famintos enche de bens (1,53).
Lucas 1,54-55
No fim, ela lembra que tudo isto é expressão da misericórdia de Deus para com o seu povo e expressão de sua fidelidade às promessas feitas a Abraão. A Boa Nova veio não como recompensa pela observância da Lei, mas como expressão da bondade e da fidelidade de Deus às promessas. É o que Paulo ensinava nas cartas aos Gálatas e aos Romanos.

ALARGANDO
O Segundo Livro de Samuel conta a história da Arca da Aliança. Davi quis colocá-la em sua casa, mas ficou com medo e disse: "Como virá a Arca de Javé para ficar na minha casa?" (2 Samuel 6,9) Davi mandou que a Arca fosse para a casa de Obed-Edom. "E a Arca de Javé ficou três meses na casa de Obed-Edom, e Javé abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família" (2 Samuel 6,11). Maria, grávida de Jesus, é como a Arca da Aliança que, no AT, visitava as casas das pessoas trazendo benefícios. Ela vai para a casa de Isabel e fica lá três meses. E enquanto está na casa de Isabel, ela e toda a sua família são abençoadas por Deus. A comunidade deve ser como a Nova Aliança. Visitando a casa das pessoas, deve trazer benefícios e graça de Deus para o povo.
A atitude de Maria frente à Palavra expressa o ideal que Lucas quer comunicar às comunidades: não fechar-se sobre si mesmas, mas sair de si, sair de casa, e estar atentas às necessidades bem concretas das pessoas e procurar ajuda na medida das necessidades.

Vinde Senhor Jesus! (Lucas 1,39-45) Marcel Domergue

Quarta-feira, 19 de dezembro de 2012 - 16h19min
por Instituto Humanitas Unisinos (IHU)
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Sacrifícios
Ficamos felizes por ouvir Deus dizer que não deseja os nossos sacrifícios (citação do Sl 40 na 2ª leitura). No Salmo 50 (7-14), ouvimos Deus declarar que não come a carne dos touros e que todos os animais da terra lhe pertencem. O antropólogo René Girard explica que, divididos por suas invejas e cobiças, os homens, para se reconciliarem, tomam uma vítima supostamente carregada de todas as violências do povo e que, sendo imolada, ela leva embora a violência toda cometida, tornando-se sagrada desde então. Diversos outros elementos se conjugam a esta perspectiva. Trata-se também de satisfazer e, portanto, de apaziguar a cólera de um Deus ultrajado. Acrescente-se, no caso de Israel, a vontade de instituir-se um rito que signifique que todas as riquezas naturais que nos alimentam nos são dadas por Deus.
Todos estes aspectos do sacrifício foram aplicados ao Cristo, mas valem apenas a título de metáforas. A Epístola aos Hebreus, frequentemente mal interpretada, explica que, com o Cristo, tudo o que se refere ao sacrifício muda de sentido. Em primeiro lugar, não se trata mais de oferecer alguma coisa, mas sim de oferecer-se a si próprio, de reconhecer que pertencemos à nossa origem, Deus. Além disso, não se trata mais de “o Pai acalmar o seu furor”, mas de amar até o fim, até o fim de si mesmo. Donde se conclui que o termo “sacrifício” é cheio de ambiguidades e que só podemos usá-lo com muitas precauções.
O verdadeiro sacrifício
No Antigo Testamento, é com muito trabalho que, aos poucos, este “sacrifício” vai perdendo o seu sentido arcaico para se tornar “sacrifício de louvor”. O Salmo 50 conclui assim os versículos sobre a recusa de Deus aos holocaustos: “quem por sacrifício me oferece a ação de graças, este me glorifica”. Deus dá, nós recebemos. O reconhecimento, portanto, é o verdadeiro sacrifício. Santo Agostinho escreve que “o verdadeiro sacrifício é toda a boa ação pela qual nos fazemos um só com Deus, em comunhão de amor”. Vê-se logo, portanto, que não se trata de causar sofrimento contra si mesmo nem despojar-se de qualquer coisa a não ser por amor; não se trata mais de comprar a boa vontade divina por algum mérito qualquer; nem tampouco de pagar um preço pelos nossos pecados. Tudo isto já nos foi dado e é por isso que o único sacrifício é a ação de graças.
Não é este o sacramento central da vida cristã? O sinal maior pelo qual significamos para nós e para os outros a obra de Deus entre nós? A Eucaristia, quer dizer, a Ação de Graças? Se tudo para nós se recapitula neste reconhecimento, se este reconhecimento, este agradecimento é a nossa atitude normal e constante para com Deus, se é este o conteúdo privilegiado de nossa oração, é porque é a expressão maior de um duplo movimento que exprime toda a nossa relação para com Deus: o nosso desejo por Ele e o dom de Si Próprio que Ele nos faz.
Maria e Isabel
O que encontramos no evangelho de hoje? Este jorrar de reconhecimento brotado desde o ventre de Isabel e a explosão do reconhecimento de Maria. Uma dupla ação de graças. É este o autêntico sacrifício. É duplo. Era preciso que se alegrassem juntas a mãe do Senhor e a mãe do servidor. A esta passagem do evangelho chamamos “visitação”. Além da visita que faz Maria a Isabel, temos também a visita de Deus. Estas duas mulheres representam a humanidade em seu acolhimento de Deus. Não vamos esquecer que nossa vida, toda a vida, depende deste acolhimento. Exatamente por isso, o nascimento é a razão da ação de graças destas duas mulheres.
Por que das mulheres? Temos também, com certeza, a ação de graças de Zacarias, o pai de João Batista; mas a mulher, nesta cultura, é o símbolo da abertura e do acolhimento. E, também, da vida: “Eva” significa “mãe dos viventes”. A gratidão das duas mulheres representa o reconhecimento de todos os que, desde o início da Bíblia, viveram a história da vinda de Deus aos homens: o texto da visitação é um tecido de referências ao Antigo Testamento, sobretudo o Magnificat (ausente de nossa leitura). O “sim” de Maria no “cumprimento das palavras que lhe foram ditas da parte do Senhor” nos faz repensar a passagem já citada do Salmo 40, retomada na segunda leitura: “Eu vim para fazer a tua vontade.”
Ampliar imagemAprofunde a reflexão sobre O Magnificat com o livro "O CANTICO DA BEM-AVENTURADA", de Maria das Graças Vieira. Coleção A Palavra na Vida/268.  
Exegese e interpretação do cântico de Maria em Lucas 1,46-55 na perspectiva da libertação que se atualiza cada vez que o pão é partilhado, a justiça se realiza e o pobre encontra-se com o deus-libertador.